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Muitos pacientes que evoluem com apresentações graves de diversas doenças agudas necessitam de uma internação prolongada em unidade de terapia intensiva (UTI). O desmame ventilatório difícil é um dos principais motivos desse longo tempo de internação.
Esses pacientes com evolução desfavorável, que sobrevivem a uma doença crítica aguda e se tornam dependentes por longa data da ventilação mecânica e de outras terapias na UTI, são denominados doentes críticos crônicos, uma nova população crescente nas UTIs de todo o mundo.
O termo doente crítico crônico foi descrito em 1985, por Girad e Raffin. Eles se concentraram nos pacientes que sobreviveram a um episódio inicial de doença crítica, mas permaneceram dependentes de terapia intensiva, ou seja, não morreram no período agudo de tratamento em uma UTI, mas também não se recuperaram.
Esse grupo de pacientes mantém um processo inflamatório persistente, além de distúrbios hormonais, humorais, neuromusculares e comprometimento da resposta imunológica.
Alguns autores utilizam o acrônimo PICS (síndrome de catabolismo, inflamação e imunossupressão persistente) para se referir aos doentes críticos crônicos.
A marca registrada da doença crítica crônica é a insuficiência respiratória que requer dependência prolongada da ventilação mecânica.
Algumas características clínicas da evolução grave em pacientes com a covid-19 potencializam a necessidade de internações prolongadas, tornando esses pacientes doentes críticos crônicos.
Eles desenvolvem uma insuficiência respiratória aguda hipoxêmica e necessitam de ventilação mecânica, havendo uma tendência a permanecerem intubados por longa permanência e/ou traqueostomizados.
Na evolução, ainda podem ser observadas lesões cardíacas, renais, hepáticas, neuromiopatias, coagulopatias, acidentes vasculares, sepse, choque e falência de múltiplos órgãos.
A porcentagem de pacientes com covid-19 que necessitam de cuidados de longa permanência não é relatada. Da mesma forma, a incidência de neuromiopatia em cuidados intensivos ainda não está documentada.
A fraqueza neuromuscular é uma ocorrência comum nos pacientes críticos crônicos, causada por miopatia e/ou neuropatia do doente crítico.
Ela é parcialmente uma consequência da melhora da sobrevida em pacientes com falência de múltiplos órgãos e sepse, mas pode estar associada a tratamentos administrados na unidade de terapia intensiva (UTI), como o uso prolongado de sedativos e bloqueadores neuromusculares nos pacientes com covid-19.
O doente crítico crônico já tem, muitas vezes, um diagnóstico. O mais importante é identificá-lo no meio de tantos pacientes em fase aguda na unidade de terapia intensiva e iniciar os cuidados especiais, que diferem dos tratamentos administrados na fase aguda.
Não há critérios diagnósticos ou até mesmo definição bem estabelecida sobre o paciente crítico crônico.
A dependência prolongada no ventilador mecânico é uma marca registrada.
Um “consenso” de critérios, apresentado por Nelson (2004) e MacIntyre (2005), estabelece como definição formal para ventilação mecânica prolongada pelo menos 21 dias consecutivos no ventilador por mais de 6 horas/dia ou pacientes que necessitam de traqueostomia durante o curso de sua admissão na UTI.
A doença crítica crônica é uma síndrome que abrange outras características clínicas e afeta múltiplos sistemas e órgãos.
A fragilidade é caracterizada como combinação heterogênea de fatores como: mobilidade reduzida, fraqueza, redução da massa muscular, estado nutricional inadequado e redução da função cognitiva.
Pacientes que apresentam fragilidade têm maior chance de desenvolvimento de doença crítica persistente, assim como maior mortalidade pela condição crônica.
Atualmente, pelos avanços tecnológicos de uma UTI, como ventiladores mecânicos, monitorização hemodinâmica invasiva e não invasiva, ventilação extracorpórea, entre outros, os pacientes críticos crônicos estão sobrevivendo e recebendo alta, muitas vezes dependentes nas atividades da vida diária, restritos ao leito, em uso de
home care
, sobrecarregando significadamente cuidadores e familiares.
Para a maioria dos sobreviventes, a dependência funcional persiste, constituindo em dependências físicas, dor e distúrbios psicossociais.
É uma população que, em muitos casos, necessita constantemente de reinternações, sobrecarregando as UTI's.
O tratamento dos doentes críticos crônicos é semelhante, independente da doença aguda inicial.
A reserva fisiológica do paciente é de extrema importância neste contexto. Condições que determinam diminuição/perda dessa estão mais relacionadas com a cronicidade nos leitos de UTI: status funcional prévio, idade avançada, doenças prévias, acometimentos agudos de repetição durante a internação, complicações e gravidade da doença aguda.
Identificar os pacientes com longa permanência na UTI e iniciar precocemente medidas junta à equipe multidisciplinar para melhor gerenciamento das futuras sequelas.
A massa muscular esquelética diminui de 2-4% por dia durante doenças críticas e imobilização, e qualquer medida para evitar sua perda é importante.
A mobilização precoce é viável mesmo em pacientes de UTI e é uma terapia promissora para prevenir ou tratar as complicações neuromusculares de doenças críticas.
Como a recuperação física é uma grande preocupação após a internação na UTI, essa abordagem pode melhorar a qualidade de vida do paciente após a alta.
A sub ou superalimentação de pacientes críticos está associada a um aumento de complicações, custos e mortalidade. A ingestão calórica insuficiente diminui as chances de alta para casa. Os pacientes precisam de monitoramento sistematicamente, a determinação de seu gasto de energia e o ajuste de sua ingestão.
A dificuldade de deglutição é comum, principalmente após intubação endotraqueal prolongada, e é subdiagnosticada. Existe uma grande ameaça de pneumonia por broncoaspiração nesses pacientes.
Durante a internação na UTI e após a alta hospitalar, muitos sofrem de distúrbios neurocognitivos e comprometimento a longo prazo. Portanto, a avaliação/acompanhamento neurocognitivo deve ser parte integrante do tratamento, assim que os pacientes estiverem conscientes.
O tratamento e os cuidados das úlceras de pressão são fundamentais, pois as mesmas são potenciais fontes de infecção. Atenção para as úlceras profundas quanto à osteomielite e quanto aos casos de infecção sem sítio aparente.
Nesses pacientes críticos crônicos não se pode esquecer de tratar as complicações endócrinas e metabólicas, comuns nessa população: alterações glicêmicas, ósseas, eletrolíticas e do eixo tireoidiano e adrenal; os níveis séricos de cortisol, renina, angiotensina e aldosterona são alterados, influenciando por exemplo, nas alterações de composição corpórea e do tônus muscular, o que contribui para um desmame difícil da ventilação mecânica.
Os cuidados paliativos são um componente essencial do tratamento abrangente para todos os pacientes com doenças críticas crônicas, incluindo aqueles que recebem terapias que prolongam a vida.
Esse cuidado inclui comunicação sensível, eficaz, proativa e contínua com pacientes e familiares sobre prognóstico, objetivos alcançáveis de tratamento, limitação terapêutica e humanização.
Para mais informações, acesse Cuidados Paliativos na UTI.
Autoria principal: Felipe Nobrega (Neurologia).
Revisão: Filipe Amado (Medicina Intensiva).
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