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Definição: Conforme o artigo 213 do Código Penal Brasileiro, define-se estupro como o ato de "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".
O processo de atendimento a pessoas em situação de violência sexual deve ser realizado preferencialmente por uma equipe multidisciplinar composta por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogo e assistente social, não se inviabilizando o atendimento no caso de falta de um ou mais profissionais na equipe.
É essencial garantir espaço para acolher e apoiar a paciente nesse momento de fragilidade e vulnerabilidade.
Deve ser definido um local específico, preferencialmente fora do espaço físico do pronto-socorro ou da triagem, para garantir a privacidade durante a entrevista e os exames.
As equipes envolvidas diretamente na assistência devem receber capacitação para o atendimento de emergência, coleta de material biológico, orientação de medidas protetoras (anticoncepção de emergência e profilaxias das infecções sexualmente transmissíveis [ISTs]), além da decisão de interrupção de gravidez resultante de estupro.
As vítimas devem ser informadas sobre tudo o que será realizado em cada etapa do atendimento. Sua autonomia deve ser respeitada, mesmo em caso de recusa de algum procedimento.
O abuso sexual é um agravo de notificação compulsória imediata, em até 24 horas, em território nacional, ao SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), desde junho de 2014 (Portaria 1.271 de 6 de junho de 2014).
A Lei nº 12.845/2013 dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo mudanças na tipificação dos crimes e nos procedimentos policiais e jurídicos.
Destacam-se, ainda, as Leis de Notificação Compulsória no caso de violência contra mulheres (Lei nº 10.778/2003), crianças e adolescentes (Lei nº 8.069/1990) e idosos (Lei nº 10.741/2003) atendidos em serviços de saúde públicos ou privados.
Nas situações de violência contra crianças e adolescentes, uma cópia da ficha de notificação deve ser encaminhada ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente.
No atendimento médico inicial, é necessário que seja realizado exame físico completo, exame ginecológico e coleta de amostras para diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis. A história da violência e o exame físico devem estar descritos da forma mais completa possível em prontuário.
Após o atendimento médico, a vítima poderá comparecer à delegacia para lavrar o Boletim de Ocorrência Policial (BOP), prestar depoimento ou submeter-se a exame pelos peritos do Instituto Médico Legal (IML). O BOP registra a violência para o conhecimento da autoridade policial, que determina a instauração do inquérito e da investigação. O laudo do IML é o documento elaborado para comprovação criminal.
O indivíduo violentado não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia; por isso, a exigência de apresentação desses documentos para atendimento nos serviços de saúde é incorreta e ilegal .
A maioria dos crimes sexuais ocorre em idade reprodutiva, sendo assim, o risco de gravidez decorrente dessa violência varia entre 0,5-5%, considerando-se a aleatoriedade da violência em relação ao período do ciclo menstrual.
A anticoncepção de emergência (AE) deve ser prescrita para todas as mulheres e adolescentes no menacme (após primeira menstruação e antes da menopausa) expostas à gravidez por contato certo ou duvidoso com sêmen, independentemente da fase do ciclo menstrual.
A AE é desnecessária se a vítima for usuária de método contraceptivo de elevada eficácia, como anticoncepcional oral ou injetável ou dispositivo intrauterino (DIU), ou se tiver feito esterilização cirúrgica, assim como nos casos de coito exclusivamente anal ou oral.
Importante destacar que a AE não exerce efeitos após fecundação, como alteração de endométrio, prejuízo à implantação ou eliminação do embrião. Portanto, o método não possui efeito abortivo.
A AE deve ser realizada o quanto antes, até 5 dias após a violência sexual. Sua eficácia é elevada, com índice de efetividade médio de 75%. No entanto, esse percentual pode variar em virtude do intervalo de tempo entre a violência sexual e a administração do medicamento, sendo mais eficaz se realizado até 24h.
A AE não provoca sangramento imediato após seu uso. A maioria das mulheres terá a menstruação seguinte ocorrendo dentro do período esperado. Nos demais casos, poderá haver atraso de até 7 dias ou de pouco mais de 7 dias.
Todas as mulheres podem usar a AE com segurança. A única contraindicação absoluta é a gravidez confirmada.
Atenção! A inserção do DIU de cobre como AE não é recomendada devido ao risco potencial de infecção genital agravado pela violência sexual, além de a manipulação genital ser pouco tolerada pela mulher em situação de violência recente.
Estudos têm mostrado que, dentre mulheres que sofreram violência sexual, 16-58% adquirem pelo menos uma IST. Algumas ISTs virais, como as infecções por herpes-vírus simples, ainda não apresentam protocolo de profilaxia medicamentosa para situações de violência.
A coleta de amostras cervicovaginais para diagnóstico de infecções pode ser feita no momento do exame, porém não deve retardar o início da profilaxia para as ISTs não virais.
Na falta da Ceftriaxona, a Azitromicina é uma medicação efetiva para a prevenção da gonococcia, além da clamídia, embora não seja a primeira escolha.
O uso do Metronidazol pode ser postergado, pelo risco de náuseas e vômitos que podem interferir em outras medicações.
Em casos de violência sexual em que ocorra exposição ao sêmen, sangue ou outros fluidos corporais do agressor, deve-se prosseguir com a imunoprofilaxia contra a hepatite B. A decisão não deve estar condicionada à solicitação ou à realização de exames complementares.
Mulheres imunizadas contra hepatite B, com esquema vacinal completo, não necessitam de reforço ou do uso de Imunoglobulina humana anti-hepatite B.
Mulheres não imunizadas ou que desconhecem seu status vacinal devem receber a primeira dose da vacina e completar o esquema posteriormente (30 e 180 dias), além de Imunoglobulina humana anti-hepatite B (IGHAHB) na dose de 0,06 mL/kg, IM, em sítio de aplicação diferente da vacina (até, no máximo, 14 dias após a violência sexual, embora seja recomendada a aplicação nas primeiras 48 horas após a violência).
Para mais informações, acesse Hepatite B
e Hepatite C.
Indicações: A quimioprofilaxia ARV é recomendada em todos os casos de penetração vaginal e/ou anal, nas primeiras 72 horas após a violência, inclusive se o status sorológico do agressor for desconhecido. No caso de penetração oral com ejaculação, deve-se individualizar a decisão.
Não se orienta profilaxia para o HIV quando a mulher apresenta exposição crônica e repetida ao mesmo agressor, devido à possibilidade de a contaminação já ter ocorrido no passado, se foi usado preservativo durante todo o crime sexual, se a violência aconteceu há mais de 72 horas, se houve penetração oral sem ejaculação, se há conhecimento de que o agressor é HIV-negativo.
Exames: A testagem para HIV do agressor não deve retardar o início da profilaxia ARV, mas deve ser realizada sempre que possível. Caso o resultado seja negativo, a quimioprofilaxia ARV não deve ser realizada ou deve ser interrompida.
Profilaxia: Deve ser iniciada imediatamente após a violência, ainda nas primeiras 24 horas (máximo de 72 horas).
Para mais informações, acesse Infecção por HIV.
A vacina contra HPV quadrivalente é disponibilizada gratuitamente pelo SUS para as vítimas de violência sexual de 9 a 45 anos.
Coleta de sangue e amostra do conteúdo vaginal realizada no momento de admissão da vítima é necessária para estabelecer ocorrência de IST ou infecção por HIV ou hepatite prévias à violência sexual (mas não pode retardar o início da profilaxia).
É direito de mulheres e adolescentes serem informadas da possibilidade de interrupção da gravidez, conforme Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, artigo 128, inciso II do Código Penal Brasileiro.
O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesse caso, a não ser o consentimento da mulher. A palavra da mulher que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência deve ter credibilidade, devendo ser recebida como presunção de veracidade.
Do mesmo modo e com mesma ênfase, elas devem ser esclarecidas do direito e da possibilidade de manterem a gestação até o seu término, garantindo-se os cuidados pré-natais apropriados para a situação.
Também devem receber informações completas e precisas sobre as alternativas após o nascimento, que incluem a escolha entre permanecer com a futura criança e inseri-la na família ou proceder com os mecanismos legais de doação.
Termo de consentimento livre e esclarecido: Documento imprescindível para a realização do abortamento. Deve constar a declaração da mulher e/ou de seu representante legal pela escolha da interrupção da gestação, ciente da possibilidade de manter a gestação até o seu término e das alternativas existentes. Deve declarar também conhecimento dos procedimentos médicos que serão adotados, bem como dos desconfortos e riscos possíveis para a saúde.
Termo de responsabilidade: Deve constar que os(as) declarantes estão cientes das consequências dos crimes de Falsidade Ideológica e de Aborto, previstos pelos artigos 299 e 214 do Código Penal, respectivamente, assumindo a responsabilidade caso as informações prestadas não correspondam à verdade.
Termo de relato circunstanciado: Devem ser descritas as circunstâncias da violência sexual sofrida que resultaram na gravidez, como data, horário aproximado, local e a descrição detalhada do ocorrido, descrição ou identificação do agressor, número de agressores, presença de testemunhas, eventual grau de parentesco etc.
Parecer técnico: Assinado por médico, atestando a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual alegada.
Termo de aprovação de procedimento de interrupção de gravidez: Firmado pela equipe multiprofissional e pelo diretor ou responsável pela instituição. Todos os documentos devem ser anexados ao prontuário médico da vítima e uma cópia deve ser fornecida para a mulher ou seu representante legal.
Objeção de consciência: São garantidos ao médico a objeção de consciência e o direito de recusa em realizar o abortamento em casos de gravidez resultante de violência sexual. No entanto, é dever do médico informar à mulher sobre seus direitos e garantir a atenção ao abortamento por outro profissional da instituição ou de outro serviço.
Abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, e com produto da concepção pesando menos que 500 g. O exame de ultrassonografia é o método mais preciso e adequado para confirmar a idade gestacional.
Revisão: Caroline Oliveira (Ginecologia, com doutorado em Ciências Médicas pela UFF).
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