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Constipação Intestinal em Pediatria

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Constipação intestinal é o hábito intestinal caracterizado por atraso, disfunção ou dificuldade para evacuar, com relato de menos de três evacuações por semana, dificuldade ou desconforto persistentes relacionados com encoprese, dor, sangramento, eliminação de fezes endurecidas e/ou volumosas presente por 2 semanas ou mais.

    Conceitos:
  • Encoprese: Perda repetida de fezes formadas, amolecidas ou semilíquidas associada à impactação fecal e não relacionada com defeitos orgânicos em crianças > 4 anos de idade;
  • Soiling : Perda involuntária ("escape") de parte do conteúdo fecal (não são evacuações completas);
  • Impactação fecal: Palpação de massa endurecida no abdome inferior e/ou reto dilatado por grande quantidade de fezes durante o toque retal e/ou radiografia de abdome demonstrando grande quantidade de fezes no cólon.

A constipação intestinal idiopática ou funcional é aquela não associada à doença orgânica ou ingestão de medicamentos. Apresenta origem multifatorial (círculo vicioso de defecações dolorosas, fatores dietéticos, psicológicos, comportamentais, ambientais e genéticos) e ainda não está completamente elucidada.

Em crianças, geralmente começa após episódio de dor à evacuação ou falta de tempo suficiente para uma evacuação adequada. As fezes permanecem no reto e a mucosa retal reabsorve a água das fezes retidas, tornando a evacuação ainda mais difícil. Esse círculo vicioso pode levar à impactação fecal, às vezes com incontinência por transbordamento fecal, perda da sensação retal e, finalmente, perda do desejo normal de defecar.

  • Constipação crônica é responsável por até 3% das consultas pediátricas e até 40% das consultas de gastroenterologia pediátrica;
  • Prevalência mundial média estimada de 14%;
  • Mais comum em meninos;
  • História familiar em até 50% dos casos;
  • Em 95% dos casos, a constipação é funcional;
  • Em 5% dos casos, a constipação apresenta causa orgânica ou medicamentosa;
  • O principal fator associado à constipação funcional é o comportamental;
  • A pouca ingestão de água e fibras é o principal fator de risco dietético para constipação.
    A história clínica e o exame físico são definidores na constipação funcional. A anamnese deve conter as seguintes informações:
  • Hábitos alimentares detalhados desde o nascimento;
  • Idade do início dos sintomas;
  • Momento em que ocorreu a liberação do mecônio (horas/dias de vida);
  • Idade de treinamento esfincteriano e detalhes sobre como foi o processo;
  • Identificação de algum acontecimento e/ou mudança de rotina e/ou de comportamento associado ao início dos sintomas;
  • História familiar de constipação e outras doenças (doença de Hirschsprung), fibrose cística, hipotireoidismo etc.);
  • Medicamentos utilizados e tratamentos realizados previamente;
  • Presença de queixas urinárias como enurese, incontinência urinária ou infecções recorrentes do trato urinário;
  • Presença de sintomas como:
    • Esforço prolongado ou excessivo para evacuar; [cms-watermark]
    • Sangramento durante a evacuação; [cms-watermark]
    • Sensação de esvaziamento incompleto; [cms-watermark]
    • História de fecaloma; [cms-watermark]
    • Encoprese e/ou escape fecal; [cms-watermark]
    • Enurese; [cms-watermark]
    • Distensão abdominal recorrente; [cms-watermark]
    • Dor abdominal crônica; [cms-watermark]
    • Flatulência; [cms-watermark]
    • Diarreia intercalada; [cms-watermark]
    • Anorexia; [cms-watermark]
    • Náuseas; [cms-watermark]
    • Vômitos; [cms-watermark]
    • Dificuldade de ganho de peso; [cms-watermark]
  • Descrição do padrão das evacuações, caracterizando sua frequência, quantidade e qualidade, bem como o ritual presente nesses momentos. Utilizar a escala de Bristol para classificar o aspecto das fezes.
Texto alternativo para a imagem Figura 1. Escala Fecal de Bristol. Ilustração: Julia Fragale
    O exame físico deve ser completo e detalhado:
  • Avaliar, inicialmente, o desenvolvimento neuropsicomotor e o crescimento (peso, altura, IMC);
  • Fazer a inspeção atenciosa da região perineal e anorretal: observar posição e aspecto do ânus, avaliar a presença de plicomas, hemorroidas externas, fissuras ou fístulas anais e suas respectivas localizações;
  • Fazer inspeção atenciosa da região lombossacra: avaliar a presença de estigmas cutâneos ( dimple sacral, lesões cutâneas, lesões pilosas, abaulamentos ou massas);
  • Auscultar o abdome à procura de peristaltismo, palpar a região abdominal à procura de fezes e fecaloma;
  • Proceder ao toque retal: é recomendado para aqueles que não preencham os critérios para constipação funcional ou com sinais de alerta. Devem-se [cms-watermark] avaliar:
    • Tônus anal; [cms-watermark]
    • Tamanho da ampola retal; [cms-watermark]
    • Presença de fezes no reto; [cms-watermark]
    • Quantidade e consistência de fezes retidas; [cms-watermark]
    • Compressão extrínseca. [cms-watermark]

O diagnóstico da constipação funcional é essencialmente clínico , com base na anamnese e no exame físico. Os exames complementares servem para afastar causas orgânicas de constipação.

Avaliação laboratorial: Não deve ser solicitada de rotina para o diagnóstico de constipação funcional. Na presença de sinais de alerta, solicitar hemograma, eletrólitos, glicose, função tireoidiana, eletrólitos no suor e anticorpo antitransglutaminase.

    Exames de imagem:
  • Radiografia de abdome: Tem indicação controversa, pois estudos clínicos não evidenciaram relação entre os sintomas clínicos e a carga fecal exibida na radiografia. É muito utilizada, no entanto, [cms-watermark] para avaliação inicial e acompanhamento de quadros de impactação fecal e avaliação de defeitos da coluna vertebral;
  • Clister opaco (radiografia com contraste via retal): I ndicado aos casos de suspeita de doença de Hirschsprung;
  • Ultrassonografia abdominal ou transretal: Indicada aos casos de suspeita de massas com compressão extrínseca;
  • Tomografia computadorizada: Indicada somente em casos de suspeita de tumores abdominais e/ou da região sacral, em que a constipação faz parte dos sintomas;
  • Ressonância magnética: Indicada para avaliação de defeitos da coluna vertebral e alterações medulares e sacrais.

Manometria anorretal: Útil para confirmar ou excluir diagnósticos associados à constipação (ex.: doença de Hirschsprung).

Biópsia retal: I ndicada para avaliar a presença de células ganglionares nos casos de suspeita de doença de Hirschsprung (padrão-ouro).

    Os critérios diagnósticos para constipação funcional foram definidos no consenso de ROMA IV:
  • Crianças ≤ 4 anos de idade incompletos devem preencher dois ou mais critérios, pelo menos 1x/semana, por um período mínimo de 1 mês, e não ter critérios suficientes para a síndrome do intestino irritável (SII);
  • Crianças > 4 anos de idade devem preencher dois ou mais critérios, pelo menos 1x/semana, por um período mínimo de 1 mês, e não ter critérios suficientes para a síndrome do intestino irritável (SII) nem diagnóstico de outra condição que justifique os sintomas após investigação apropriada.
    Critérios para constipação funcional (crianças < 4 anos de idade):
  • Duas ou menos evacuações por semana;
  • Pelo menos um episódio de incontinência fecal por semana após controle esfincteriano;
  • História de retenção fecal;
  • Dor ou dificuldade para evacuar;
  • Presença de grande massa fecal no reto;
  • Fezes de grosso calibre que entopem o vaso sanitário;
  • Pelo menos um episódio de incontinência fecal por semana (em crianças que já passaram pelo desfralde completo).
    Critérios para constipação funcional (crianças > 4 anos de idade):
  • Duas ou menos evacuações no banheiro por semana;
  • Pelo menos um episódio de incontinência fecal por semana;
  • História de postura retentiva e retenção fecal excessiva;
  • Dor ou dificuldade para evacuar;
  • Presença de grande massa fecal no reto;
  • Fezes de grosso calibre que entopem o vaso sanitário.
    Critérios para SII:
    1. Dor abdominal ao menos 4 dias/mês associada a um ou mais dos seguintes sintomas:
  • Relação com a evacuação;
  • Alteração na frequência das fezes;
  • Alteração na aparência das fezes.

2. Em crianças com constipação, a dor pode não se resolver com a resolução da constipação (crianças nas quais a dor se resolve têm constipação funcional, e não SII).

3. Após avaliação adequada, os sintomas não podem ser plenamente explicados por outra condição médica. [cms-watermark]

Esses critérios devem ocorrer por, pelo menos, 2 meses antes do diagnóstico. [cms-watermark]

    Causas orgânicas de constipação:
    • Alterações anorretais:
    • Imperfuração anal;
    • Ânus ectópico;
    • Estenose anal;
    • Acalasia anal;
  • Doenças gastrointestinais:
    • Doença de Hirschsprung;
    • Doença celíaca;
    • Alergia à proteína do leite de vaca;
    • Inércia colônica;
    • Pseudo-obstrução intestinal;
  • Doenças endocrinológicas e metabólicas:
    • Hipotireoidismo;
    • Diabetes melito;
    • Hipercalcemia;
    • Hipocalcemia;
    • Hipopotassemia;
  • Doenças sistêmicas:
    • Paralisia cerebral;
    • Distrofia muscular;
    • Fibrose cística;
    • Botulismo;
    • Neoplasia;
    • Síndrome de Down;
    • Síndrome de Prune Belly;
  • Causas medicamentosas:
    • Anticonvulsivante;
    • Codeína;
    • Morfina;
    • Anticolinérgico;
    • Quimioterapia;
  • Defeitos de medula espinhal:
    • Espinha bífida;
    • Meningomielocele;
    • Trauma medular.
    A constipação funcional representa um fardo significativo para as crianças e seus cuidadores e está associada a redução da qualidade de vida, desempenho acadêmico reduzido e problemas psicológicos como agressividade, ansiedade e depressão. O tratamento da constipação deve levar em consideração todos os fatores citados e tem como bases gerais:
  1. Educação, conduta comportamental e nutricional.
  2. Desimpactação fecal.
  3. Manutenção (prevenção do reacúmulo de fezes).
  4. Recondicionamento dos hábitos intestinais.
    Educação, conduta comportamental e nutricional:
  • Orientar a família sobre o diagnóstico para melhorar a adesão ao tratamento, remoção da culpa, vergonha e sentimento de punição. Explicar o plano e o objetivo do tratamento, a rotina do treinamento esfincteriano e o tempo prolongado que será necessário para se obter um resultado duradouro;
  • Treinamento de toalete: Realizar treinamento esfincteriano com criança com idade superior a 4 anos, colocando-a sentada no penico ou vaso adaptado por 10 minutos após as principais refeições;
  • Diário de evacuações: Anotar frequência, qualidade e quantidade das evacuações, sintomas associados e aspecto das fezes;
  • Conduta nutricional: As fibras alimentares estimulam a peristalse gastrointestinal, acelerando o trânsito colônico. Até o momento, entretanto, ainda não há evidências claras que justifiquem sua suplementação rotineira. Deve-se estimular o consumo de fibras na dieta da criança de acordo com a fórmula: idade em anos + 5-10 g. Recomendam-se alimentação saudável, com consumo de frutas e verduras adequadas para cada faixa etária, e aumento da ingesta hídrica.
    Desimpactação fecal:
  • Enema glicerinado: 10-20 mL/kg via retal, uso intra-hospitalar;
  • Enema fosfatado: 2,5 mL/kg/dia (dose máxima: 133 mL) via retal por, no máximo, 6 dias. Não usar em crianças < 2 anos de idade;
  • Macrogol 3350 (> 2 anos de idade): 1,5 g/kg/dia (dose máxima: 100 mg) VO 1-2x/dia antes das refeições por 1-3 dias. Medicamento disponível com sabor e de menor custo;
  • Polietilenoglicol 4000 (considerado tratamento de primeira linha) : 0,5 -1 g/kg/dia VO 1-2x/dia diariamente. Medicamento manipulado, sem sabor e de maior custo;
  • Hospitalização :
    • Impactação grave;
    • Criança com necessidades especiais;
    • Baixa adesão ao tratamento em casa;
    • Quando a administração dos enemas pelos pais é psicologicamente contraindicada;
  • Desimpactação cirúrgica:
    • Impactação grave refratária;
    • Medo e resistência ao tratamento;
    • Criança com necessidades especiais.
    Manutenção (prevenção do reacúmulo de fezes):
  • Tem como objetivo m anter a frequência adequada de evacuações, evitar a passagem contínua de fezes grandes e eliminar a retenção de fezes. Essa fase envolve a conduta nutricional (citada anteriormente) e o tratamento farmacológico;
  • Polietilenoglicol 4000: 0,2-0,8 g/kg/dia (dose média: 0,5 g/kg/dia). Considerado tratamento de primeira linha;
  • Macrogol 3350 (Muvinlax ® ): 0,69-1,42 g/kg/dia (dose média: 0,84 g/kg/dia);
  • Lactulose:
    • Lactentes: 5 mL/dia VO;
    • Crianças de 1-5 anos de idade: 5-10 mL/dia VO;
    • Crianças de 6-12 anos de idade: 10-15 mL/dia VO;
    • Crianças > 12 anos de idade e adultos: 15-30 mL/dia VO;
    • Preferencialmente 1x/dia, pela manhã ou à noite;
    • Pode ser tomada antes ou durante as refeições, misturada em suco, iogurte, leite e outros;
    • A dose deve ser ajustada de forma a ocorrerem 2-3 evacuações diárias.
    Recondicionamento dos hábitos intestinais:
  • Crianças pequenas: Evitar indução do desfralde antes dos sinais de prontidão necessários para essa habilidade;
  • Crianças maiores: Manter treinamento de toalete (sentar no vaso sanitário com redutor de assento e apoio para os pés por 10 minutos após as principais refeições);
  • Critérios de sucesso terapêutico: Três ou mais evacuações por semana, sem dificuldade ou desconforto, sem encoprese e nem necessidade de tratamento farmacológico.

O uso de probióticos está indicado a crianças com constipação funcional?

Constipação Funcional Intratável

As alternativas de tratamento para crianças com constipação intratável são limitadas e incluem injeções de toxina botulínica no esfíncter anal, irrigação transanal, enemas continentes anterógrados (ECA) e, em casos raros, estimulação do nervo sacral (SNS) e ressecção cirúrgica parcial ou total do cólon.

    Autoria principal:
  • Alexandre Galvão (Pediatria);
  • Vanessa Nascimento (Cirurgia Pediátrica Geral pelo IFF/FIOCRUZ e Oncológica pelo INCA).

Revisão: Gabriela Guimarães Moreira Balbi (Pediatria pela UFPR e Reumatologia Infantil pela UNIFESP).

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