Este conteúdo é sobre como identificar os indivíduos com elevado risco cardiovascular, a principal causa de morte no Brasil, e direcionar, na Atenção Primária à Saúde (APS), intervenções adequadas nos níveis populacional e individual a cada paciente.
Quanto menor for o tempo de exposição aos fatores de risco cardiovascular, menor será a probabilidade de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, clínicas ou subclínicas.
A classificação de
risco cardiovascular
estima a probabilidade de um indivíduo apresentar um evento vascular maior (coronariano, cerebrovascular, complicação de doença arterial periférica ou morte cardiovascular) durante um período de 10 anos.
A estratégia de classificação de risco cardiovascular sistemática na população geral ou em subpopulações específicas mediante programas de rastreamento é eficaz para a detecção precoce dos fatores de riscos cardiovasculares, possibilitando intervenções.
A classificação de risco cardiovascular não é um evento pontual, devendo ser revisada longitudinalmente na APS e atualizada, por exemplo, a cada 5 anos (não é bem estabelecido na literatura esse intervalo de tempo).
ESC 2021 – Sistematic Coronary Risk Evaluation ( SCORE2 e SCORE2-OP na população ≥ 70 anos de idade ): Validados na população europeia aparentemente saudável, conforme faixas etárias.
Pode-se calcular o risco cardiovascular usando-se o IMC em vez de exames laboratoriais, embora a predição feita dessa maneira seja menos acurada.
Primeiro passo: Calcular ERG obtido pela calculadora da SBC validada para adultos de 30 e 74 anos de idade e avaliar:
|
Cate
goria
|
Critérios de inclusão |
Meta de LDL
(mg/dL) |
| MUITO ALTO RISCO |
Doença aterosclerótica significativa em região coronariana, cerebrovascular ou vascular periférica
(obstrução arterial ≥ 50%) |
< 50 |
| ALTO RISCO |
ERG ≥ 20% (homem) ou 10% (mulher)
Pacientes com LDL-c ≥ 190 mg/dL Aterosclerose subclínica documentada* Aneurisma de aorta abdominal DRC (taxa de filtração glomerular estimada [TFGe], DM1 ou 2 + LDL-c entre 70-189 mg/dL + fatores de risco CV** ou aterosclerose subclínica |
< 70 |
| RISCO INTERMEDIÁRIO |
ERG 5-20% (homem) ou 5-10% (mulher)
DM1 ou 2 que não preencham critério de alto risco |
< 100 |
| BAIXO RISCO |
ERG < 5 (homem e mulher) +
LDL 70-189 mg/dL |
< 130 |
São critérios de aterosclerose subclínica:
Ultrassonografia (USG) de carótidas com evidência de placas (espessamento médio-intimal), escore de cálcio coronariano > 100 e índice tornozelo-braquial (ITB).
Fatores de risco no DM:
Observação:
Assim como o ERG faz uma avaliação especial de pacientes diabéticos, existe uma tabela específica da OMS para a classificação desses pacientes.
Nem todos os pacientes com DM são classificados como "risco alto".
A partir dessa classificação, direcionam-se as intervenções, conforme tópico a seguir.
A estimativa de risco cardiovascular por meio de escores fornece dados objetivos a partir de uma abstração generalizada em determinado contexto populacional.
A recomendação de medidas de intervenção de acordo com o risco cardiovascular deve também considerar o cenário individual do paciente, como outras comorbidades,
fragilidade
e polifarmácia, se estiverem presentes.
A tomada de decisão para iniciar ou intensificar as medidas de intervenção para prevenção do risco cardiovascular é um processo complexo, dependente de múltiplos fatores, e deve ser sempre compartilhada com o próprio paciente. Em resumo, indicam-se:
| Risco cardiovascular | Intervenções |
| BAIXO RISCO |
INTERVENÇÕES DE INTENSIDADE BAIXA
- Cessação do tabagismo; - Alimentação saudável; - Manutenção de peso/CA; - Atividade física; - Ênfase em medidas não farmacológicas e diurético de baixa dose para HAS estágio 1, quando presente |
| RISCO INTERMEDIÁRIO |
INTERVENÇÕES DE INTENSIDADE MODERADA
Além do recomendado anteriormente, acrescentar: - Intensificar orientações sobre mudanças do estilo de vida (MEV); - Dieta com características cardioprotetoras; - Farmacoterapia contra tabagismo; - Uso de estatinas; - Cautela no uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs); - Ênfase no controle efetivo da HAS |
| ALTO RISCO |
INTERVENÇÕES DE INTENSIDADE ALTA
Além do recomendado anteriormente, acrescentar: - Estatinas; - AAS em casos selecionados: homens com > 55 anos e mulheres > 65 anos de idade* |
| MUITO ALTO RISCO |
INTERVENÇÕES DE INTENSIDADE ALTA
Além do recomendado anteriormente, acrescentar: - Estatina de alta intensidade; - AAS como prevenção secundária |
*Avaliar risco
versus
benefício:
Contraindicação a pacientes com risco de hemorragia digestiva (sintomas dispépticos, história de úlcera péptica ou usuários crônicos de AINE).
Observação!
A USG de carótidas para detectar placa ou espessamento médio-intimal pode ser utilizada quando não há TC de coronárias disponível.
Observação!
Biomarcadores como proteína C-reativa ultrassensível, fosfolipase-2 associada à lipoproteína, cistatina C e peptídio natriurético tipo B
não
são ferramentas com fortes evidências para uso na reclassificação do risco cardiovascular.
Recomendado para a prevenção secundária de DCV, mesmo em pacientes que não apresentem alteração significativa do perfil lipídico.
Para prevenção primária, o uso de estatinas também é indicado pela redução de desfechos de eventos cardiovasculares maiores e mortalidade geral, mas deve sempre estar fundamentado na estimativa do ERG do indivíduo.
Em prevenção primária de DCV, o tratamento pode ser iniciado com 40 mg/dia de Sinvastatina.
De acordo com a classificação do risco cardiovascular do paciente segundo
ERG
,
as intervenções para uso de estatinas devem ser realizadas conforme tabela a seguir:
| Risco | Redução a ser obtida da LDL | Estatinas disponíveis (mg) |
| MUITO ALTO |
> 50%
(alta intensidade) |
Atorvastatina 40-80
Rosuvastatina 20-40 |
| ALTO |
> 50%
(alta intensidade) |
Atorvastatina 40-80
Rosuvastatina 20-40 |
| INTERMEDIÁRIO |
30-50%
(moderada intensidade) |
Atorvastatina 20-40
Rosuvastatina 5-10 Sinvastatina 20-40* Lovastatina 40 Pravastatina 40-80 Fluvastatina 80 Pitavastatina 2-4 |
| BAIXO | < 30% |
Sinvastatina 10
Lovastatina 20 Pravastatina 10-20 Fluvastatina 20-40 Pitavastatina 1 |
*Deve-se evitar o uso de 80 mg/dia de Sinvastatina pelo risco de rabdomiólise.
Observação!
A
Força-Tarefa de Saúde Preventiva dos Estados Unidos (US Preventive Services Task Force, USPSTF) recomenda prescrição de estatina para pacientes com risco moderado e com, pelo menos, um fator de risco.
Para os pacientes de baixo risco, recomenda-se
tratamento não farmacológico
por 3-6 meses (decisão individualizada dos riscos e benefícios), com início de medicação, caso LDL persista > 160 mg/dL.
Para indivíduos que não toleram estatinas ou não alcançam redução desejada no nível de LDL-C,
Ezetimiba
(ou inibidores do PCSK9) pode ser considerada em substituição ou associação.
Fibratos e ácidos nicotínicos não demonstraram benefício na redução da mortalidade por DCV, não devendo ser prescritos com objetivo de prevenção primária.
Para indivíduos com TGL > 500 mg/dL, pode ser considerada a associação a
fibratos
para reduzir o risco de pancreatite aguda. Essa associação aumenta o risco de rabdomiólise – deve-se monitorar o paciente.
Em casos de níveis elevados de colesterol total ou de LDL-C, avaliar outras causas de hipercolesterolemia secundária: hipotireoidismo, DRC, hepatopatias crônicas e uso de progestagênios, corticoides, esteroides anabólicos e isotretinoína.
Independentemente do risco cardiovascular, todos os pacientes se beneficiam de orientações para MEV. Para cada fator de risco modificável, é possível orientar medidas específicas.
Tabagismo:
Cessação. Veja mais sobre abordagem para cessação do tabagismo em: Intervenção breve;
Entrevista motivacional;
e Aconselhamento em redução de danos.
Peso: Controle para manutenção ou redução do IMC (ideal IMC ≤ 25 kg/m 2 ) ou da CA sempre que indicado.
Consumo de bebidas alcoólicas: Ingestão inferior a 30 g/dia de álcool (cerca de 2 latas de 350 mL de cerveja) para homens e 15 g/dia para mulheres.
Dietas
plant-based
possuem benefício na prevenção cardiovascular?
O tratamento com estatinas também é recomendado de acordo com o risco do paciente, sendo indicado aos casos de alto ou muito alto risco.
Se o paciente apresentar disfunção renal ou houver risco de interação medicamentosa, a estatina deve ser iniciada em dose menor.
Para prevenção secundária, o papel das estatinas está bem estabelecido, inclusive nos idosos – o benefício já começa a ser percebido precocemente, com 2 a 3 anos do início da medicação. Orienta-se
manter ou prescrever estatinas nesses cenários
.
Atenção para reconsiderar o uso desse medicamento em quadros de fragilidade importante, comprometimento funcional/cognitivo muito significativo, expectativa de vida muito reduzida.
Pacientes de muito alto risco (com lesão de órgão-alvo ou DCV estabelecida) têm meta de LDL.
Para pacientes diabéticos com mais de 40 anos de idade e alto risco, a meta de LDL-C é < 70 mg/mL.
Estatina pode ser considerada para pacientes com menos de 40 anos de idade com lesão de órgão-alvo e LDL-C > 100 mg/dL.
Caso a meta de LDL não seja alcançada, associa-se Ezetimiba.
Quando apresentam aumento de TGL, LDL normal e HDL baixo e têm risco alto ou muito alto, devem usar estatina ou estatina associada a Ezetimiba.
Pacientes dialíticos não devem iniciar terapia com estatina, mas esta deve ser mantida caso já estivesse em uso quando do começo da diálise.
Autoria principal: Renato Bergallo (Medicina de Família e Comunidade).
Revisão:
Philipp Oliveira (Medicina de Família e Comunidade).
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